segunda-feira, 13 de junho de 2011

Incansável busca pela imagem

(O Estado de São Paulo 13 de junho de 2011)
Barriga proeminente, cabeça calva, gestos vagorosos, jeito levemente parvo - Alfred Hitchcock (1899-1980) não apresentava nenhum vestígio aterrorizante, nenhum sinal daquele homem que, no cinema, provocou arrepios na plateia durante meio século. Basta lembrar da cena do chuveiro, em Psicose; ou da angustiante espera pelo tocar dos címbalos da orquestra em O Homem Que Sabia Demais; ou ainda da aproximação do assassino em Janela Indiscreta. Ele foi o cineasta que sabia como ninguém envolver o público em uma atmosfera de expectativa e medo.
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Hitchcock: barriga proeminente, cabeça calva, gestos vagorosos


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Se ainda resta alguma dúvida sobre tal capacidade, basta iniciar uma peregrinação diária ao CCBB que, a partir de quarta-feira, vai apresentar boa parte da obra de Hitchcock durante seis semanas. Nesse período, serão apresentados 54 longas e 127 episódios de sua série para a televisão, além de três curtas. Melhor: a apresentação será em película de 35 mm, ou seja, sem aquele aspecto de imagem de TV se fosse em DVD.
"Considere essa mostra um privilégio e uma bênção, em meio a tanta porcaria exibida nos cinemas hoje em dia", disse o cineasta Peter Bogdanovich ao Estado, em entrevista por telefone. "Observada a obra em sequência, é possível detectar a incrível organicidade do cinema de Hitchcock." Bogdanovich é autor de filmes respeitáveis, como A Última Sessão de Cinema, mas sua contribuição à sétima arte é reforçada com entrevistas que fez com célebres cineastas, no momento (anos 1960 e 70) em que os grandes estúdios estavam se desmobilizando - foi assim com John Ford e, claro, Hitchcock.
"Eu o conheci pessoalmente em 1961, logo depois de finalizado Psicose", continua Bogdanovich. "Lembro de ter dito que aquele filme não estava entre meus favoritos e Hitchcock respondeu que talvez eu não tivesse entendido a intenção humorística da trama. Na verdade, o longa é tão aterrorizante que ainda hoje é difícil perceber esse aspecto."
Hitchcock especializou-se em revelar o segredo das pessoas - cineasta do voyeurismo, do olho e da dúvida, da ambiguidade, ele tornou-se célebre por mostrar o verso e o reverso do mundo. "Ele foi perfeito ao usar todos os recursos do cinema que dispunha para chocar, cativar e até mesmo seduzir o público", observa Adrian Wootton, chefe executivo do Film London e especialista na obra de Hitchcock, em entrevista realizada por e-mail. "Também foi inigualável sua habilidade em escolher colaboradores de alto calibre, como o compositor Bernard Herman, o desenhista Saul Bass e diversos roteiristas."
Filho de uma família inglesa católica - o que, diria ele mais tarde, "na Inglaterra já é uma excentricidade" -, a formação de Hitchcock começou cedo, especialmente por conta da imposição religiosa. Em diversas entrevistas, ele relembrou um fato marcante: aos cinco anos, depois de cometer uma travessura, o pequeno Hitch foi enviado pelo pai para um delegado amigo seu, com uma carta. Depois de lê-la, o policial o deixou trancafiado durante cinco minutos e, ao libertá-lo, disse: "Veja o que pode acontecer se não for um bom menino".
"Isso explica seu temor pela polícia que, na maioria de seus filmes, não faz o papel do mocinho", comenta Bogdanovich. "De fato, sua obra no cinema claramente reflete um debate moral entre ações boas e más", completa Wootton.
Ter estudado em um colégio de jesuítas, que contemplavam os autores de pequenas indisciplinas com alentados castigos corporais, também solidificou sua formação. Ou seja, o rígido catolicismo inglês mostrava que a inocência não existe e que o corpo servia apenas para atravancar os caminhos do espírito. Bogdanovich observa que Hitchcock sempre foi um homem extremamente organizado e cumpridor das leis em sua rotina, mas, no cinema, buscava a redenção - daí a decisão de aparecer em praticamente todos seus filmes, para deleite da plateia, sempre de maneira cômica ou desastrosa: servia para mostrar como seu corpo era um objeto estranho em meio à beleza de suas heroínas.
A relação com as atrizes, aliás, sempre foi tumultuada. "Tippi Hedren, por exemplo, com quem filmou Os Pássaros e Marnie - Confissões de uma Ladra, me contou que Hitchcock era obcecado em controlar sua carreira", conta Wooton. "Para completar, as feministas o atacavam, dizendo ser misógino e sádico. Para mim, a realidade é outra, pois sua obra sempre exibiu uma mistura de sedução, erotismo e violência, assim, há prazer e dor na interpretação das heroínas."
Já Bogdanovich vê a relação como ambígua. "Mas, na maioria das vezes, é positiva, pois o ponto de vista feminino quase sempre impera nas suas tramas." Ele cita como exemplo Interlúdio: "Trata-se de uma história de amor dark entre Ingrid Bergman e Cary Grant. E foi Grant quem me fez notar isso". O filme, aliás, está entre os preferidos de Bogdanovich, ao lado de Janela Indiscreta ("Um estudo sobre o uso da câmera") e Intriga Internacional ("Diversão em estado puro"). Já Wootton prefere a profunda e estilística complexidade de Um Corpo que Cai. Agora, o público tem a chance de fazer sua escolha.  

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